Antônio Bispo dos Santos, ou simplesmente Nego Bispo, é pensador, agricultor, quilombola, contracolonizador. Nasceu no Quilombo Saco-Curtume, no Piauí, e nunca se separou da terra que lhe ensinou tudo: a plantar, a observar, a esperar o tempo certo. Bispo escreve como quem colhe palavra do mesmo jeito que colhe feijão: com calma, com prática, com saber do mato. O pensador reconhece o valor do academicismo, mas não o exalta.
Bispo não aprendeu com livro, aprendeu com vida. E quando escreve, não se preocupa em “citar autores”, porque a fonte dele é outra: oralidade, memória, ancestralidade. Ele diz que a escrita é coisa recente. A oralidade, não. A oralidade vem de antes do mundo ser mundo. Por isso, fala com a força de quem sabe de onde veio e não tem pressa em chegar.
Nego Bispo não quer ensinar “o certo”. Quer desensinar o errado que nos empurraram. Quer que a sociedade aprenda com os quilombos. Não quer fazer resistência. Quer fazer existência, com raiz e com autonomia.
Três ideias se repetem como reza no seu pensamento:
1. A terra dá. A terra quer.
A terra dá fruto, mas também quer retorno. Quer descanso, quer festa, quer cuidado. A agricultura industrial extrai. O quilombo devolve. Por isso, o povo da terra sabe: não se tira sem repor.
Esse ensinamento é princípio e fim. É a régua da reciprocidade. Para Nego Bispo, a terra não é recurso, é parente. E, como parente, não vive só de entrega, vive de troca. A agricultura colonial, industrial, mercantil, extrai, esgota, suga. O povo quilombola, por outro lado, aprendeu com os ciclos do mato que a terra só continua dando se também recebe.
Dar à terra não é só adubar. É respeitar seu tempo, é deixá-la descansar, é manter as matas de pé, é dançar quando colhe, é cozinhar em roda, é devolver o que se tirou: em forma de canto, de festa, de água limpa, de sombra.
Esse pensamento recusa o extrativismo, que só o que retira minérios ou árvores, e retira a alma da terra sem devolver sentido. Na lógica quilombola, o que se planta não é só alimento: é relação. E o que se colhe, se partilha.
2. Quilombo é projeto de mundo
Quilombo não é coisa do passado. Não é esconderijo. Não é resistência. Quilombo é tecnologia ancestral de vida coletiva, onde cada corpo tem função, cada tempo tem ritmo, e tudo se decide em roda.
Bispo insiste: quilombo não é resistência. A resistência é sempre reação. Quilombo é existência em si, é criação de forma própria de vida, onde a lógica do capital, da produtividade, da propriedade privada não entra. Quilombo é roda, é tempo espiralar, é vida em comum, não para sobreviver ao sistema, mas para viver fora dele.
Na sua visão, quilombo não é uma categoria inventada pelo Estado ou uma herança museológica da escravidão. Quilombo é presente e é futuro. É escola sem quadro, é roça sem cerca, é casa sem alicerce no cimento. É outra noção de economia, de justiça, de tempo. E, sobretudo, de pessoa: no quilombo, ninguém é só indivíduo, é corpo coletivo.
Quando diz isso, Bispo está propondo um deslocamento radical. Ele está dizendo que sobrevivência não é sobrevivência quando é forçada. E que viver no quilombo é escolher um outro tipo de tempo, de espaço, de vínculo. É projeto político e espiritual.
3. Contracolonizar é inverter o mapa
Não basta resistir à colonização. É preciso inverter o caminho, fazer contracolonização. É dizer não ao tempo do relógio, não ao saber da cidade, não à monocultura do pensamento. É retomar as palavras, os nomes, os modos de plantar, de aprender, de caminhar.
Não basta “descolonizar”. Para Bispo, o prefixo “des” ainda nos mantém presos àquilo que se quer negar. O que ele propõe é contracolonizar: inverter, subverter, reencantar. Não seguir em frente, voltar a andar em círculo. O pensamento se desvia de se enquadrar na estrutura, pois busca derrubar o prédio e plantar uma árvore.
A contracolonização é gesto radical. É deixar o relógio e voltar pro tempo das sementes. É parar de chamar floresta de “recurso natural”. É falar com as palavras que os avós usavam e deixar de querer “aprovação” de quem não pisa no chão. É também contracartografar: sair do mapa do branco e andar com as estrelas dos mais velhos.
“O contrário da colonização não é a liberdade. É a confluência.”
Na confluência, ninguém manda. Ninguém impõe. Cada um vem com o que sabe. E todos se escutam. Contracolonizar é isso: é fazer do saber uma roda, do tempo um ponto de encontro, e da vida um gesto coletivo de reexistência.