Falar em legitimação da arte é mergulhar em um dos debates mais complexos da sociologia e da história da arte: quem decide o que é arte, por que certas obras são consagradas enquanto outras permanecem invisíveis, e como as relações entre artistas, críticos, instituições e mercado moldam esse processo? No artigo Notas sobre a legitimação da arte, publicado em 2006, a pesquisadora Rosane Kaminski propõe um olhar sociológico para essas questões, destacando como a consagração artística não se limita à qualidade estética ou ao talento individual do artista, mas envolve uma rede de agentes, práticas, instituições e interesses simbólicos e econômicos.
O texto se apoia em pensadores fundamentais como Pierre Bourdieu, Arnold Hauser e Néstor García Canclini, entre outros, para mostrar como o campo artístico é atravessado por disputas de poder, regras internas e influências externas. Kaminski evidencia que a arte, longe de ser um território puro e autônomo, é construída socialmente e sua legitimação depende tanto de críticos, curadores, museus e colecionadores quanto das pressões comerciais, do mecenato e da espetacularização midiática.
1. Agentes do campo artístico
- Envolvem críticos, historiadores, museólogos, curadores, marchands, leiloeiros, colecionadores, patrocinadores, jornalistas e o público.
- Esses atores formam o circuito de produção, difusão e recepção da arte, estabelecendo hierarquias e valores.
- Citação: “Todo o complexo que comporta a produção, a difusão e a recepção das obras de arte por parte de um público colabora na determinação, enfim, da legitimidade de uma dada produção (material e/ou conceitual) como arte”, Rosane Kaminski no texto “Notas sobre a legitimação da arte”.
2. Estrutura do campo artístico (Bourdieu)
- A posição que um artista ocupa dentro do campo de produção simbólica pesa na legitimação de sua obra.
- O valor de uma obra está relacionado às relações de competitividade, favorecimento e ao diálogo com obras já consagradas.
- Citação: “Todas as relações […] são medidas pela estrutura do campo na medida em que dependem da posição que esta categoria particular ocupa na hierarquia que se estabelece do ângulo da legitimidade cultural.” (BOURDIEU, 1999, p.159)
3. Processo de autonomização da arte
- Desde o século XVI, a arte busca autonomia em relação a poderes externos (Igreja, monarquia, política).
- Na Europa, o processo se acelera no século XIX, com a Revolução Industrial e novos meios de comunicação.
- Essa autonomia significava que a legitimação deveria vir de dentro do campo artístico (pares, críticos, curadores), e não de instâncias externas.
- Citação: “A obra de arte deixava de ser veículo doutrinário de pregações morais, religiosas e políticas” (ARGAN, 1992).
4. Instituições e eventos
- Salões, bienais, museus e exposições funcionam como instâncias de consagração e legitimação.
- No Brasil, os eventos (salões, bienais) se tornam canais privilegiados de legitimação, em razão da fragilidade do mercado interno de arte.
5. Mercado: lógica publicitária e comercial
- A partir do século XX, a lógica do mercado e da publicidade passa a ser também um meio de legitimação.
- O sucesso comercial, antes visto como suspeito, se transforma em critério de consagração.
- Citação: “O sucesso comercial era suspeito: via-se nele um sinal de comprometimento […] Ao passo que hoje, cada vez mais, o mercado é reconhecido como instância de legitimação.” (BOURDIEU, 1997, p.37)
6. Mecenato público e privado
- Empresas e o Estado, através de leis de incentivo e patrocínios, atuam na legitimação simbólica de artistas e eventos.
- O mecenato privado, segundo Bourdieu, cria dependência econômica e simbólica da arte em relação ao mercado.
- Citação: “Pode-se temer que o recurso ao mecenato […] instale pouco a pouco os artistas e os sábios em uma relação de dependência material e mental em relação às potências econômicas.” (BOURDIEU e HAACKE, 1995, p.27).
7. Mídia e espetacularização
- A comunicação de massa transforma a arte em espetáculo e amplia o público.
- Canclini observa que museus e obras clássicas ou vanguardistas passam a circular como produtos de entretenimento:
“…os museus recebem milhões de visitantes e as obras literárias clássicas ou de vanguarda são vendidas em supermercados ou se transformam em vídeo” (CANCLINI, 2000, p.32)