Resenha livro | Contra a Interpretação, Susan Sontag

Em Contra a Interpretação, Susan Sontag desafia algumas das bases mais consolidadas da crítica ocidental. Publicado em 1966, o livro reúne 26 ensaios que propõem uma virada na forma como pensamos e sentimos a arte, em especial contra a prática de buscar significados ocultos por trás da obra: o ato de interpretar como forma de empobrecimento da experiência estética.

Com uma escrita ensaística, aguda e vibrante, Sontag propõe que, em vez de “traduzir” a arte para uma linguagem secundária da crítica, deveríamos aprender a vê-la com mais intensidade e presença. O livro é uma defesa da experiência sensorial e uma crítica à tirania do conteúdo sobre a forma. Seus textos abordam não apenas artes visuais, mas literatura, teatro, cinema e cultura pop.

A crítica à interpretação e a defesa da experiência estética
O ensaio que dá nome ao livro propõe que a interpretação se tornou um hábito cultural desgastado, que reduz a potência sensível das obras. Para Sontag, interpretamos demais e sentimos de menos. Ela escreve: “A interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte” e, nesse gesto, pede uma estética da presença, em que a forma não seja secundária ao conteúdo, mas parte essencial da experiência.

Arte como experiência corporal e sensorial
Em ensaios como Sobre o Estilo, O Artista como Sofredor Exemplar e Happenings: uma arte da justaposição radical, Sontag argumenta que o estilo é, em si, uma forma de conhecimento e que o corpo está no centro da recepção artística. O happening, por exemplo, é celebrado como uma forma viva, intensa e fugaz, mais próxima da vida do que da representação.

A nova sensibilidade e os limites da crítica tradicional
Nos textos finais da coletânea, especialmente em Uma cultura e a nova sensibilidade, a autora defende uma mudança de sensibilidade nas artes e no pensamento. Ela valoriza formas híbridas, antiacadêmicas, permeáveis à cultura popular e à experiência cotidiana. O ensaio Notas sobre o Camp, que se tornaria um marco cultural, é exemplo desse deslocamento: ali, Sontag trata do gosto como construção cultural e política, revelando os códigos da ironia, da teatralidade e do exagero como formas legítimas de arte.

A arte como liberdade e risco
Ao escrever sobre cineastas como Robert Bresson, Jean-Luc Godard e Jack Smith, Sontag se mostra fascinada por artistas que desafiam a convenção narrativa, formal e moral. Em A imaginação da catástrofe, por exemplo, ela reflete sobre a estética dos filmes de ficção científica, associando o apelo visual à necessidade de encontrar novas formas de expressão em um mundo em crise.

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Contra a tirania do conteúdo
Sontag denuncia uma obsessão moderna por “explicar” a arte, como se toda obra precisasse ser traduzida em outro sistema de linguagem filosófica, moral, política. Ela chama isso de tirania do conteúdo: uma forma de violentar a obra ao tentar extrair dela um “significado” definitivo. Para a autora, esse impulso interpretativo apaga justamente o que há de mais vivo na arte, sua presença sensível, sua forma irrepetível. Em vez de ver a arte como um enigma a ser decifrado, Sontag propõe que a experimentemos como um fenômeno estético, físico, direto. A interpretação, nesse contexto, se torna uma forma de defesa contra o impacto da obra, um modo de domá-la, de neutralizá-la. Ela nos convida, ao contrário, a deixar que a arte nos afete.

A valorização da forma
Um dos pilares do pensamento de Sontag é a ideia de que a forma não é um ornamento do conteúdo: ela é o próprio pensamento manifestado. O estilo, a composição, a escolha dos materiais, o ritmo e a estrutura são inseparáveis daquilo que a obra comunica. Ao insistir na primazia da forma, a autora vai contra uma longa tradição de leitura que vê a arte apenas como “veículo” de ideias. Para ela, a forma é uma experiência concreta, sensível, e precisa ser tratada com o mesmo rigor que se dedica às ideias. Reconhecer a forma é, portanto, reconhecer a inteligência que se expressa nos detalhes, nos gestos, nas atmosferas. É olhar para a obra não como um meio para algo, mas como um fim em si.

Crítica como gesto ético e estético
Longe de recusar a crítica, Sontag propõe uma outra forma de crítica mais atenta, mais sensível, menos arrogante. A crítica, nesse modelo, não é uma operação de desmonte, mas de escuta. Em vez de buscar verdades ocultas, trata-se de acolher a complexidade da obra, observando como ela se dá no tempo e no espaço, o que ela faz com o corpo de quem a vê, o que ela move. Essa crítica exige disponibilidade e ética, porque não projeta sobre a obra uma grade de leitura externa, mas a reconhece em sua alteridade. É uma crítica que se interessa menos por definir e mais por experimentar junto. Estética e ética, aqui, se encontram: ver bem, para Sontag, é também uma forma de estar no mundo com atenção e respeito.

A arte como forma de vida
Para Sontag, a arte não serve para reforçar certezas ou ensinar lições. Ela existe para ampliar nossa experiência do mundo e, por isso mesmo, tem valor em si. Ao propor que vejamos a arte como uma forma de vida, a autora se afasta de concepções utilitaristas ou doutrinárias. A obra de arte é uma instância radical de liberdade, de invenção, de intensidade. Ela nos oferece modos outros de sentir, de imaginar, de estar. Nesse sentido, fazer e fruir arte é engajar-se com a existência de forma mais plena. A arte não precisa justificar-se por sua função política ou pedagógica. Ela já transforma por ser aquilo que é: um exercício de liberdade formal e afetiva.

Reivindicação de novas sensibilidades
Sontag é uma crítica do seu tempo, mas olha para o futuro. Ao longo do livro, ela identifica sinais de transformação nas formas de ver, de pensar e de fazer arte. Em ensaios como Notas sobre o Camp e Uma cultura e a nova sensibilidade, ela observa o surgimento de uma sensibilidade mais aberta à ironia, ao artifício, à teatralidade, à cultura popular. Ela celebra essa virada, pois acredita que uma crítica viva precisa estar disposta a dialogar com múltiplas formas de expressão. Em vez de defender a “alta cultura” contra o “mau gosto”, ela propõe uma crítica mais generosa e complexa, que abrace a multiplicidade do mundo contemporâneo. Sua defesa da sensibilidade é, em última instância, uma defesa do prazer da possibilidade de sentir mais, de ver mais, de ser mais tocado.

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