No ensaio Por uma revisão dos estudos curatoriais, Lisette Lagnado propõe um deslocamento do vocabulário crítico comumente aplicado às práticas artísticas desenvolvidas na América Latina, entre as décadas de 1960 e 1980. Ao invés de categorizar essas práticas como instalação ou performance, a autora propõe o termo instauração como ferramenta conceitual para pensar ações artísticas que se recusam à fixação e à codificação institucional.
O texto parte da constatação de que os termos “instalação” e “performance” são frequentemente aplicados de forma generalizante e acrítica. No caso da instalação, Lagnado questiona sua origem associada à arte minimalista e à reconfiguração do espaço expositivo, predominantemente norte-americana, e aponta sua inadequação quando transposta para contextos em que a precariedade dos materiais, a instabilidade dos espaços e a urgência política tensionam o campo da arte. Quanto à performance, a crítica recai sobre o esvaziamento do termo, que passa a abranger desde ações individuais até eventos espetaculares, sem distinção entre práticas rituais, políticas e simbólicas.
A alternativa conceitual apresentada por Lagnado é a ideia de instauração, um termo que carrega a potência do ato inaugural e do acontecimento situado. A instauração não é um gênero artístico, mas uma operação. Seu sentido se produz no instante em que algo se põe em relação. Não se trata de instalar uma obra nem de performar um corpo, mas de instaurar uma situação que convoca a presença, a participação e o risco. A instauração ativa o espaço e o tempo, e muitas vezes opera à revelia da legitimação institucional.
Lagnado argumenta que as artistas latino-americanas, em especial aquelas reunidas na exposição Mulheres Radicais, produzem gestos instauradores que escapam das nomenclaturas cristalizadas pela crítica. Seus trabalhos ativam uma relação direta com o público, com o entorno, com a urgência histórica. A instauração, nesse sentido, é inseparável do contexto social e político em que emerge. Ela não é apenas uma forma, mas uma posição.
O texto propõe, por fim, que a crítica de arte e os estudos curatoriais abandonem os modelos normativos herdados de uma história da arte centrada no eixo Europa–Estados Unidos. Para isso, é necessário reconfigurar o próprio vocabulário com que se nomeiam e se interpretam as práticas. O conceito de instauração, ao invés de organizar obras em uma nova categoria, serve para desestabilizar categorias preexistentes e abrir espaço para uma crítica situada.
Abaixo você pode conferir termos e expressões que ela utiliza para descrever alguns termos comuns na arte contemporânea.
• Instalação
Termo amplamente utilizado no circuito da arte contemporânea para designar obras espaciais e imersivas. Lagnado critica sua aplicação genérica e descontextualizada às práticas latino-americanas, apontando que muitas vezes o termo encobre especificidades históricas, materiais e políticas.
• Performance
Frequentemente associada a ações corporais e efêmeras. A autora questiona seu uso expandido e pouco rigoroso, que passa a abarcar todo tipo de gesto ao vivo, esvaziando o sentido político e cultural de práticas que não se reconhecem nesse rótulo.
• Instauração
Conceito central do ensaio. Refere-se a um ato inaugural que instaura uma situação, um acontecimento no tempo presente. Não é uma categoria estética ou técnica, mas uma operação ética e política que ativa relações, convoca presenças e desafia a normatividade institucional.
• Práticas situadas
Designa ações artísticas que emergem de contextos específicos, sociais e políticos. A autora valoriza as práticas que não operam a partir de modelos internacionais, mas que respondem à realidade local e criam seus próprios modos de existência.
• Vocabulário crítico
Refere-se ao conjunto de termos utilizados para descrever e legitimar as obras de arte. Lagnado defende a revisão desse vocabulário, sobretudo nos estudos curatoriais, propondo que ele seja pensado a partir da experiência latino-americana e não apenas a partir dos cânones do norte global.
• Gêneros artísticos
Categorias fixas como pintura, escultura, instalação e performance. O texto propõe o abandono dessas classificações quando elas não dão conta das experiências produzidas pelas artistas analisadas, especialmente aquelas que operam na transversalidade dos meios.
• Acontecimento
Diz respeito ao que se realiza de forma única, no tempo e no espaço, sem possibilidade de repetição. A instauração é pensada como acontecimento e não como obra no sentido tradicional, pois está mais ligada à experiência do que ao objeto.
• Deslegitimação
Ideia de que certas práticas não encontram espaço nos circuitos hegemônicos da arte por não corresponderem às categorias reconhecidas. A autora aponta como isso afeta especialmente as produções de mulheres latino-americanas, que são marginalizadas por não se encaixarem no vocabulário dominante.