Resenha livro | Arte para quê? – A urgência social da arte brasileira, Aracy Amaral

Publicado originalmente em 2003, Arte para quê? reúne décadas de pesquisa de Aracy A. Amaral sobre a arte brasileira no período de 1930 a 1970, com foco especial na sua dimensão social, política e engajada. Como quem atravessa um arquivo com a luz acesa, a autora faz da escrita uma escavação: procura indícios, conexões, silêncios e contradições para responder à pergunta que intitula a obra e que segue, de certa forma, reverberando hoje.

Este não é um livro que deseja apenas “interpretar” a arte do passado. Seu objetivo é mais sutil (e mais radical): deslocar os marcos com os quais ela tem sido contada. Ao reunir manifestos, depoimentos, programas de exposições e recortes de jornais, Aracy busca não uma teoria sobre a arte social, mas uma reconstrução historiográfica dos contextos em que a arte se fez política no Brasil.

Os anos 1930–40: uma arte em formação

Logo nos primeiros capítulos, o leitor é conduzido ao Brasil dos anos 1930, momento de efervescência política e cultural, marcado pela ascensão do Estado Novo, pela industrialização e pelos primeiros contornos do que se entenderia como arte moderna brasileira.

Nesse contexto, Aracy Amaral destaca como os artistas se viram entre o desejo de inovação formal e o apelo à função social da arte. Cândido Portinari, por exemplo, é apresentado como figura emblemática desse dilema. Sua produção muralista, inspirada por Diego Rivera e outros muralistas mexicanos, é lida como tentativa de construir uma arte nacional popular, capaz de comunicar com o “povo”, ainda que mediada por instituições estatais.

“Portinari representa o primeiro caso de artista plástico brasileiro preocupado com a denúncia social em sua obra”, escreve Amaral, apontando para as tensões entre linguagem pictórica e conteúdo político.

Os anos 1950: arte e contradição em um Brasil em mudança

Nos capítulos seguintes, o livro mergulha nos anos 1950, marcados por um forte projeto desenvolvimentista. A autora nos mostra como esse projeto reverberou nas artes visuais: de um lado, a euforia modernizadora que levou à criação da Bienal de São Paulo e do MASP; de outro, um certo esvaziamento da crítica social que marcara a geração anterior.

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Ainda assim, Amaral revela que nem tudo era consenso. O livro recupera a atuação de artistas como Di Cavalcanti e Clóvis Graciano, que, mesmo à margem das vanguardas, mantiveram o interesse por temas sociais. Também dedica atenção à arte sacra de caráter popular, ao trabalho com comunidades e às práticas que já antecipavam uma arte mais colaborativa e participativa.

Os anos 1960 e a radicalização da linguagem

É nos anos 1960, no entanto, que o livro atinge seu núcleo mais pulsante. Com o endurecimento do regime militar e a fragmentação das linguagens artísticas, Amaral narra como os artistas buscaram novas formas de intervenção social e política.

Aqui, a autora dá especial destaque à experiência de Tucumán Arde, ação coletiva realizada na Argentina em 1968 por artistas, jornalistas e estudantes, que utilizou estratégias da arte conceitual para denunciar a repressão e a miséria na província de Tucumán. Embora o episódio não tenha ocorrido no Brasil, sua inclusão é reveladora: Aracy a enxerga como modelo de ação latino-americana insurgente, que articula arte e denúncia de forma estrutural.

“Com Tucumán Arde, os artistas não apenas representaram uma realidade: eles se inseriram nela como sujeitos históricos”, afirma.

A autora também trata das experiências de resistência no Brasil, como os trabalhos de Rubens Gerchman, Anna Bella Geiger, Carlos Zilio e outros artistas que, em meio à repressão, criaram imagens e estratégias críticas à ditadura, à desigualdade e à censura.

Uma escrita em tensão

A forma como Aracy Amaral escreve não é neutra e nem pretende ser. Ao contrário: o livro é atravessado por uma ética da urgência. Seu texto é sóbrio, mas comprometido. Distante do jargão acadêmico, mas rigoroso. Constrói pontes entre os acontecimentos históricos e as escolhas estéticas dos artistas, com um olhar que sabe que arte e política nunca estão separadas.

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