Paul Veyne e Michel Foucault: quando a história encontra o poder dos discursos

Entre historiadores, Paul Veyne é conhecido por desafiar as convenções da historiografia tradicional. Entre filósofos, é lembrado como um dos intérpretes mais lúcidos de Michel Foucault. No ensaio que encerra seu livro Como se escreve a história, Veyne não apenas reconhece a originalidade do pensamento foucaultiano, como afirma, com todas as letras: Foucault revoluciona a história.

Paul Veyne lê Michel Foucault como quem encontra um novo terreno para a história e abraça a complexidade, o dissenso e a instabilidade como parte da própria matéria do historiador. Com Foucault, a história deixa de ser uma sucessão ordenada de fatos, com métodos, leis ou verdades universais, para se tornar uma investigação dos discursos, dos poderes e das formas de subjetivação que nos constituem.

O fim das grandes narrativas

Para Veyne, uma das principais contribuições de Foucault foi romper com a ideia de que a história possui um rumo linear, progressivo ou universal. A história não é movida por um “motor invisível” rumo ao progresso, nem orientada por leis gerais. O que há, em vez disso, são descontinuidades, rupturas e múltiplas camadas de sentido. Foucault ensinou os historiadores a abandonar os mitos da continuidade histórica, aquelas histórias totalizantes que ligam passado, presente e futuro por um fio condutor que muitas vezes é apenas uma construção ideológica.

A história como arqueologia dos saberes

Um dos conceitos mais influentes de Foucault é o de arqueologia. Em vez de contar a história de uma ideia de forma evolutiva, Foucault propõe investigar as condições de possibilidade que, em determinada época, permitiram que certos discursos existissem. Veyne entende essa abordagem como um convite para repensar o papel do historiador: não como um guardião das verdades do passado, mas como um analista dos sistemas de enunciação, das práticas discursivas e das regras que definem o que é considerado “verdade” em cada tempo.

Nesse sentido, a história deixa de ser a busca por origens e se torna uma leitura crítica do que cada sociedade autoriza como saber válido.

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A verdade como construção histórica

Para Foucault, e Veyne compartilha esse diagnóstico, a verdade não é uma essência eterna, mas um efeito de poder. O que chamamos de “verdade” depende das relações de força, das instituições e dos dispositivos que produzem, controlam e disseminam o saber. A psiquiatria, a medicina, o direito, a pedagogia: todos esses campos definem o que é “normal” ou “patológico”, “legal” ou “criminoso”, “aceitável” ou “inaceitável” e não o fazem de forma neutra. Veyne vê nisso uma chave fundamental para compreender como a história se forma: ela é atravessada por esses jogos de verdade, mais do que por fatos brutos.

Dispositivo e poder: novos objetos para a história

Outro legado central que Veyne destaca em Foucault é a noção de dispositivo. Trata-se de um conjunto heterogêneo de práticas, discursos, instituições, normas e técnicas que se articulam para produzir efeitos de poder em um determinado contexto. Em vez de narrar a história de grandes heróis ou eventos, Foucault (e, com ele, Veyne) propõe que o historiador analise o funcionamento desses dispositivos: como se formam, como operam, como moldam os sujeitos.

Essa abordagem abre caminho para estudar temas antes considerados marginais ou invisíveis pela história tradicional, como a loucura, a sexualidade, os sistemas disciplinares, os saberes do corpo. Tudo isso passa a ser legítimo como objeto histórico.

A libertação do historiador

Para Veyne, adotar os instrumentos conceituais de Foucault significa libertar o historiador das amarras da história “científica”, causalista, cronológica. Em vez de buscar leis gerais ou grandes explicações totalizantes, o historiador pode se voltar para os pequenos deslocamentos, para os discursos esquecidos, para as práticas cotidianas. Pode investigar as regras do jogo em que as verdades de cada época se constituíram e como elas foram contestadas.

Entretanto, Veyne não é um “foucaultiano puro”. Ele reconhece os limites e as ambições do pensamento de Foucault, e o admira justamente por sua radicalidade. Para Veyne, Foucault mostrou que a história não é a “ciência do passado”, mas uma forma de análise crítica das condições de possibilidade do presente.

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